Alberto Magalhães*
Tenho lido e ouvido pessoas alegarem que os vândalos,
participantes dos últimos movimentos populares de protestos nas ruas, são
bandidos perigosos e que devem ser reprimidos a cassetete e presos. Até
“cabeças pensantes” querem que os vândalos sejam punidos exemplarmente, pois que
são o joio em meio ao trigo nas manifestações políticas legítimas do povo, e
que é bem vinda a violência policial contra aqueles, para que seja mantida a
ordem pública, essa ferramenta que já foi usada nocivamente para o controle social.
Mas, como seria legítima uma truculenta ação policial se os governos
brasileiros são os primeiros a disseminar a desordem no nosso meio? Se o poder
público sempre lhe dá causa? Ora o Estado brasileiro, travestido de governo
militar, perseguiu, prendeu, torturou, exilou e matou simples idealistas que
pregavam e buscavam um tipo melhor (mesmo que não seja) de Estado e de Governo
para o povo brasileiro.
Esse repreensível vandalismo popular foi o mais atual e
legítimo ato de democracia que tenho visto, como foi as invasões de terras não
produtivas iniciadas recentemente e a “subversão de esquerda”, nas décadas e 60
e 70. Tudo isso é verdadeira ação
popular, o resto é discurso de direitistas reacionários. Afinal, toda ação
política do povo constitui-se em democracia pura, genuína.
Façamos a devida comparação dos fatos. O primeiro ato – o
vandalismo – traz prejuízo material e foi cometido por pequena parcela do povo
oprimido socialmente. O segundo ato – a agressão policial – traz consequências
físicas e foi cometido por agentes do Estado, ente que representa o povo
reprimido com violência. Os alvos em questão são: objeto material x corpo
humano. O primeiro trata do dano material, o segundo da lesão corporal. A
contenção, a imobilização física, o uso da força estritamente moderada
prescritas no manual operacional policial não autoriza as cacetadas reiteradas
ou desferidas a esmo como acontece, inclusive, em festas populares.
Na segunda comparação vemos que o primeiro ato foi ideológico
e político – a militância de esquerda não armada, nos anos 60 -, insignificante
frente ao segundo – a repressão da ditadura militar - que maltratou, feriu e
matou pessoas, amordaçou a sociedade e se expandiu atingindo famílias – com
seus órfãos -, escolas, universidades, congresso, leis, dignidade, civilidade.
A luta era ideológica, então porque os militantes intelectuais, os politizados,
os trabalhadores foram tratados como se supunha que deveriam ser tratados
aqueles que excederam a linha ideológica, ou seja, os guerrilheiros?
Como, então, diante do arbítrio militar, não poderia surgir
os grupos armados dos movimentos populares - composto dos mais afoitos e
indignados, para dar suporte à luta dos primeiros? Mas o Brasil não deve ter
herói próprio, no nosso imaginário só pode haver Che Guevara, porque a
sublevação do povo lá em Cuba foi vitoriosa. Se a daqui tivesse o mesmo
resultado haveria muitas ruas e praças com o nome dos nossos mortos esquecidos
que são, ainda hoje, considerados subversivos.
Temos um povo alienado e medroso. Aqui quem pega em arma para lutar é
bandido, e quem mata um cidadão idealista - da utopia de um mundo melhor - sem
arma na mão, é o quê?
Comparemos a ação do preso que furtou a merenda e o botijão
de gás de uma escola pública com aquele que desviou milhões de verba para a
educação pública. Nessa lógica o Exército brasileiro já deveria ter ocupado o
Palácio do Planalto para prender os corruptos e os chefes do crime organizado
no Brasil. Todo mundo iria aprovar um intervenção nesse sentido, mas se não é o
povo a quem ele quer servir – fora da guerra, a quem então serviu no passado,
na sua atuação de repressão política? O EB só foi cívico contra as criminosas
pessoas do povo? E as criminosas pessoas do poder? Não fazem jus a uma
reprimenda contundente?
Como alguém pode querer punir rigorosamente um vândalo que
quebrou vidraças de banco, ônibus e órgãos públicos num país cujos mesmos
bancos lucram valores exorbitantes, explorando os correntistas e pagando
ínfimos salários aos seus empregados. Onde empresários – juntos com os gestores
públicos - disseminam os caos no transporte a fim de aumentarem os lucros. Onde
os governantes e gestores públicos promovem o desvio fraudulento e o
desperdício dos recursos do povo num país de mais de cinquenta milhões de miseráveis?
Punamos exemplarmente os vândalos com a prisão, mas antes
punamos os corruptos e chefes do crime organizado queimando-os na fogueira em
praça pública – como a famigerada inquisição fez com os liberais –, e punamos
os intelectuais reacionários com o banimento do país, como o malfadado regime
de exceção fez com os partidários da utopia do paraíso social. Democracia não é
feita de ordem pública, mas de governos legítimos e austeros, de governantes
honestos e responsáveis, de povo politizado e consciente, de liberdade e
igualdade, de civilidade e civismo. A ordem vem em seguida.
*Alberto Magalhães é funcionário público
do Estado de Sergipe e presidente do Centro de Estudos e Ação para o Progresso Humano e Social - CEAPHS.