terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O moleiro, o déspota e os juízes

De todas as ilusões provocadas pelo poder, nenhuma é tão clamorosa quanto o sentimento de superioridade, de onipotência, de infalibilidade. Governantes de outrora consideravam-se a própria divindade, sentimento reforçado pelos súditos e lacaios que o idolatravam; outros imaginavam-se enviados dos Céus, uma espécie de representante divino encarregado de conduzir a plebe ignara pelas veredas do mundo. Tem sido assim há muitos séculos, e não importa o quanto tenhamos avançado em nossas concepções de mundo; sempre haverá no poder quem se sinta o ungido pelos deuses: senhor de tudo e de todos, controlador de raios, tempestades, pensamentos, palavras e atos.

A Prússia do século XVIII conheceu um dos maiores estadistas de que se tem notícia: Frederico II, também conhecido como Frederico, O Grande. Déspota esclarecido, amigo de Voltaire, amante das artes, o rei Frederico II também se notabilizou pelas campanhas militares bem-sucedidas, que renderam ao território da Prússia importantes faixas de terra.

A despeito da grandiosidade de sua figura, um episódio curioso marca a biografia do monarca. Coube ao escritor François Andrieux registrar o fato. No ano de 1745, Frederico II foi visitar as obras do castelo de Sans-Souci, projetado especialmente para seu conforto e repouso longe da Corte. Para sua infelicidade, havia nas cercanias um moinho pertencente a um moleiro, que, incorporado à paisagem, diminuía-lhe a beleza da vista.

Um dos funcionários da corte (da mesma cepa dos canalhas que violam sigilo bancário de caseiro para satisfazer a interesses mesquinhos de ministros de Estado) tentou demolir o moinho, mas enfrentou brava resistência do moleiro. Frederico, então, após consultar seus ministros e conselheiros, resolveu ele próprio indagar ao incômodo vizinho o porquê da resistência. Ouviu do moleiro a seguinte resposta: “ainda há juízes em Berlim”.

Não sei dizer o que aconteceu com o vizinho do monarca. Sua célebre frase, no entanto, ecoa há mais de vinte e cinco décadas, e nunca será esquecida. Ninguém jamais dirá nada tão profundamente belo e simples. Nem o mais iluminado dos juristas. Nem o maior cultor das liberdades civis. A leveza e a grandiloqüência daquelas palavras - ditas por um homem simples diante de um déspota pasmo - calam tão forte no âmago dos amantes da justiça e da liberdade que parecem ter sido sopradas pela própria Thêmis à acústica do moleiro.

Os que de alguma forma apreenderam sua beleza e significado estão convictos de que jamais, em tempo algum, deverão praticar ou permitir que contra eles se pratique qualquer ato que atente contra a liberdade, manifestada em todas as suas expressões. Evidente que a história é pródiga em revelar que o custo de tal convicção às vezes é a própria vida. Pois não há honra em viver covardemente; não há dignidade no silêncio conveniente, mesquinho, condescendente. Por isso é preferível viver como o velho moleiro de Sans-Souci: sem ouro, sem glórias, sem nome inclusive. Mas consciente... plenamente consciente do senso de justiça a guiar a pena dos juízes contra o arbítrio dos tiranos... consciente do valor do indivíduo diante das garras do Leviatã... consciente – segundo a lição que nos legou Tobias Barreto de Menezes - de que “o direito é a força que matou a própria força”.

O Autor: Paulo Márcio é delegado de Polícia Civil, graduado em Direito (UFS), especialista em Gestão Estratégica em Segurança Pública (UFS), especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (Fa-Se) e colunista do Universo Político.com. Contato: paulomarcioramos@oi.com.br
 
Imagem: internet/autoria desconhecida

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Democracia: a dama prostituída

Por Paulo Márcio*

Aos que não conseguem enxergar os fatos políticos senão através das lentes do fanatismo ou do fundamentalismo, nenhuma ideia ou argumento, por mais plausível que seja, tem o condão de lhes arrancar do estupor em que invariavelmente se encontram. Aferrados às mais estúpidas ideologias – perdoem-me pelo pleonasmo -, são incapazes de compreender, ainda que por um átimo de segundo, quão rica, dinâmica e complexa é a realidade que nos cerca – insuscetível, por isso mesmo, de ser delimitada por modelos teóricos toscos, resultantes, o mais das vezes, de visões simplórias, desconexas e fragmentadas do todo, da unidade.

A democracia, por exemplo, em que pese seja glorificada desde os gregos antigos, não raro sofre os mais terríveis golpes justamente por parte daqueles que julgam compreendê-la e, publicamente, costumam enaltecê-la em verso e prosa. A farsa, porém, não dura para sempre. Mais dia menos dia a verdade vem à tona. Caídas as máscaras, podemos constatar, desapontados, que os auto-intitulados guardiões da democracia não passam de hospedeiros, incubadoras, barrigas de aluguel do mais abjeto e cruel totalitarismo que brota das suas entranhas - capaz de fazer corar de vergonha gente da estirpe de Mao Tsé-Tung, Stálin, Hitler e Fidel Castro.

Winston Churchill afirmou certa feita que “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.” Com efeito, a par das suas imperfeições, a democracia é, de longe, o regime político que mais corresponde aos anseios das sociedades pós-modernas, pós-industriais. E, apesar das variações verificadas entre um e outro sistema democrático existentes, é de se reconhecer seu caráter universal.

A esse propósito, o ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev (o homem que sepultou o comunismo), declarou que a “democracia é tanto um valor quanto um instrumento político. Como valor, é universal. Como instrumento, deve ser ajustada a cada país. Há uma versão americana, uma francesa e outra japonesa. A Rússia [e outros países dentre os quais o Brasil, aditamos] precisa desenvolver seu próprio modelo de democracia.”

É incontestável que, como valor, a democracia esteja plenamente consolidada no Brasil. Isso pode ser aferido sem maiores dificuldades a partir da análise do texto constitucional, um dos mais avançados do mundo no trato de questões relativas aos direitos fundamentais (aí incluídos os direitos individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos da nacionalidade, os direitos políticos e a organização dos partidos políticos). Infelizmente, não se pode dizer o mesmo em relação à democracia como instrumento, vale dizer, à forma como a democracia é vivenciada no dia-a-dia, a permitir o fortalecimento das instituições republicanas, o exercício dos direitos e liberdades constitucionais, a dignidade da pessoa humana, como corolário dos princípios universais que informam a democracia-valor.

Vejamos o caso do governo Lula. É fato que no planto internacional a imagem do presidente da República vai de vento em popa. Os diversos prêmios que lhes foram outorgados por organismos internacionais, instituições, jornais e importantes universidades de países ocidentais e democráticos denotam o reconhecimento da comunidade internacional em relação às políticas econômicas e sociais desenvolvidas no País, bem como os esforços do presidente Lula para consolidar a posição do Brasil como um importante ator no plano internacional, estreitando os laços com diversos países em todos os continentes, independentemente do peso político de cada um no cenário mundial.

É óbvio que há exceções, ou melhor, equívocos graves que precisam ser apontados, como a atabalhoada intervenção na crise institucional hondurenha e a perigosa e mal explicada aproximação com o Irã do sanguinário Mahmoud Ahmadinejad, sem falar na proteção ao terrorista italiano Cesare Battisti, um assassino tratado como herói pelo ministro Tarso Genro e figuras bizarras da esquerda fossilizada. Erros sim, gravíssimos, mas, felizmente, nada que se compare às loucuras perpetradas no continente pelo esquipático trio bolivariano composto por Hugo Chávez (Venezuela), Evo Moralez (Bolívia) e Rafael Correa (Equador) – “Os piratas do Caribe”, como são saudados carinhosamente pelo delirante escritor anglo-paquistanês Taric Ali, em livro homônimo.

Entretanto, se é certo que no âmbito internacional Lula conquistou até a admiração de Sua Majestade, a Rainha da Inglaterra, e do popstar estadunidense Barack Obama, não é menos exato que no plano interno não vem se comportando como um verdadeiro democrata. Dúvidas? Rememoremos: foi no seu governo que José Dirceu e sua trupe aviltaram a não mais poder o princípio da separação dos poderes, um dos pilares do Estado Democrático de Direito, ao subornar metade do Congresso Nacional com recursos desviados do erário e do caixa dois do Partido dos Trabalhadores, fazendo-o refém do Executivo; foi o próprio presidente Lula quem, lá pelo final do seu primeiro mandato, manifestou o desejo de fechar o Congresso Nacional, num surto de totalitarismo que passou tão rápido como uma dor de cabeça – sim, Freud explica, mas não adianta; foi Lula quem propôs recentemente a criação de um órgão para substituir o Tribunal de Contas da União, ao argumento nada democrático de que o TCU estaria atrapalhando o governo ao suspender a execução de obras visivelmente superfaturadas, e, pra piorar, essa semana passou por cima do TCU ao liberar verbas para obras embargadas pelo tribunal, num flagrante desrespeito que pode configurar crime de responsabilidade.

Se tudo isso já era indefensável à luz da democracia – exceto para quem anestesiou a consciência por conta da ideologia (escusável) ou por um mero cargo em comissão (inescusável) -, imaginem o que falar do malsinado Plano Nacional dos Direitos Humanos 3, ou simplesmente PNDH-3, esse monstrengo com nome de vírus da gripe equina. Sim, pois uma pérola dessas só pode ter saído da cabeça dos ruminantes e quadrúpedes que pastam indolentemente no gramado da Esplanada dos Ministérios, tamanha a profusão de incongruências, inconstitucionalidades, ilegalidades, fantasias, delírios utópicos e revanchismos encontradiços ao longo de todo o decreto presidencial – que pôs no paredão, de uma só vez, a independência do Poder Judiciário, o direito de propriedade, a liberdade de imprensa, a segurança jurídica e outros valores “burgueses”, todos eles coincidentemente, democráticos, sagrados, universais.

Lula, que, sem ler e sem saber, assinou o novel “Manifesto Comunista” – pelo menos é o que ele diz – deveria observar mais atentamente seus assessores, saber o que eles pretendem, quais são suas reais intenções, sob pena de, também sem saber, levar o regime democrático pro vinagre. Essas figuras impolutas, tão palatáveis a uma massa perdida no umbral da consciência política e na zona cinzenta da história, são verdadeiros tarados do poder. Não lhes interessa, sob nenhuma hipótese, a manutenção de um regime democrático. Usam a democracia apenas como meio para atingir seus objetivos mais imediatos, pois essas são as regras a que todos devem se sujeitar. Mas, uma vez aboletados no topo do mundo, logo revelam-se incorrigíveis depravados. Cafetões que são, querem a democracia aviltada, corrompida, prostituída. Ao diabo com os valores universais da ética, do pluralismo de idéias, da liberdade, da cidadania. Tudo coisa de burguês, de gente católica, mesquinha, reacionária. Bom mesmo é viver em Cuba ou na Venezuela... bom mesmo é sonhar com o paraíso e tomar banho cronometrado, pra lavar nossas vergonhas, pra lavar nossas alcandoradas almas libertárias.

*Paulo Márcio é delegado de Polícia Civil, graduado em Direito (UFS), especialista em Gestão Estratégica em Segurança Pública (UFS), especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (Fa-Se) e colunista do Universo Politico.com. Contato: paulomarcioramos@oi.com.br