Clóvis Barbosa*
Não queria me despedir de Déda. Ficaria em casa naquela segunda-feira.
O traslado do seu corpo já havia sido feito, e ele estava sendo homenageado
pelo povo e autoridades, inclusive a presidente da república, no prédio que ele
mandou restaurar, o Palácio Olímpio Campos. Um filme
passou pela minha mente. As imagens surgiam como se estivéssemos voltando a
trilhar os mesmos caminhos andados em 37 anos de amizade, forjada no amor e nas
divergências. Muito carinho de um pelo outro, mas brigas também. Tudo começou
no Colégio Atheneu, onde fui dar um curso de história do cinema ao lado de Nilo
Jaguar, Djaldino Moreno, Alberto Carvalho e Antônio Jacintho Filho, onde quatro
meninos mostraram interesse pelo curso, Déda, Oliveira Júnior, Aragão e Evandro
Curvello, quarteto que só andava junto e partilhava dos mesmos interesses
culturais. Depois, veio a política, no PT e nos movimentos sociais, a
advocacia, no início de sua carreira, a noite, no Baixo Barão, Scooby-Doo, Bar do Vinícius, Gosto Gostoso e tantos outros. De 1990 a 1996, ficamos de mal,
embora em 1994 ele recebesse o meu voto, da minha família e amigos na sua
candidatura vitoriosa a Deputado Federal. Não nos falávamos. Mas eu sempre
falava dele, e ele de mim para amigos comuns.
A noite chegava e minha angústia aumentava cada vez mais. Não, eu tenho
que ir ao Palácio Olímpio Campos. Eu tenho que vê-lo pela última vez. Olho seu
rosto, dou-lhe um beijo e volto para casa. Uma multidão na praça. Consigo
entrar pelos fundos e subo, cambaleante, a escadaria até a sala onde o seu
corpo estava estendido. Ao vê-lo, a emoção tomou conta de mim. Choro bastante.
Recomponho-me e passo a imaginar o cenário criado pelo poema de Walt Whitman, O Captain! My Captain. Subverto o texto
e passo a me exprimir em voz baixa: - Sobre o deque meu capitão jaz, frio e
morto tombado, enquanto lá fora as bandeiras do PT tremulam. Pedi-lhe: -
Ergue-te, Ó capitão! Meu capitão! A nossa viagem ainda não está finda, Ó
capitão! Meu capitão! Ergue-te e ouve os sinos; ergue-te - o clarim garganteia,
por ti buquês e grinaldas engalanadas - por ti eles chamam, a massa oscilante
volta-lhe suas faces ansiosas; eis capitão! Querido amigo! Este braço sob sua
cabeça colocado! - Meu capitão não responde, seus lábios estão pálidos e
silentes,
Meu querido amigo não sente meu braço, não tem pulso, a vontade ausente.
Meu querido amigo não sente meu braço, não tem pulso, a vontade ausente.
Lembrei-me do seu aniversário de 50 anos. Fiz um artigo com o mesmo
título do poema de Walt Whitman. Ali, eu perquiria que fatores identificariam
os homens, a ponto de uni-los mediante laços de afeto? O que levaria alguém a
não medir sacrifícios por um amigo e, até mesmo, a definir outrem como tal? Por
que nós nos ajuntamos em bandos, grupos, partidos ou tribos, projetando marcas
que nos distinguem de outros, em face dos quais não encontraríamos afinidade?
Após filtrar, com rigor, ideias que deixei fluir com naturalidade, creio ter
chegado a uma razoável conclusão. Segundo elas, três seriam os ingredientes que
imantariam os indivíduos, irmanando-os e fazendo deles emergir uma mesma
frequência, na forma de acordo com a qual captariam a sonoridade do mundo, ou
no modo de enxergar as aflições que nosso coração faz ecoar pelas curvas da
vida. Penso que etnia, idioma e similitude de propósitos são os pilares que nos
põem no mesmo bloco.
Por isso, emocionei-me com a homenagem que se prestava ao nosso Déda,
que estava completando meio século naquele ano de 2010. Que beleza! Nessa fase
da vida, o alemão Bach já havia formatado a Arte
da fuga e escrito seus mais importantes trabalhos, a exemplo de O cravo bem temperado e da Paixão segundo São Mateus. Quando Bach tinha
cinquenta anos, adveio-lhe o filho caçula, que acabou por seguir carreira
idêntica à do pai. Naquele dia de festa, 11 de março, nasceu Astor Piazzolla,
que, aos cinquenta anos, já produzira seus mais reluzentes tangos (as
obras-primas Adiós Nonino e Libertango). Pois é, com apenas
cinquenta anos, Déda, artífice da palavra, estilista no trato com a
administração pública e regente singular do Estado, já tinha sido, na política,
quase tudo que se possa conseguir galgar.
No executivo, só não ocupou a presidência da república, mas foi
prefeito da capital de seu Estado (Aracaju), por duas vezes (eleito pela
primeira vez aos quarenta anos), e governador de Sergipe, também duas vezes
(sempre vencendo no primeiro turno). Já no legislativo, apenas não ocupou uma cadeira
de vereador e outra de senador. Mas foi, com menos de trinta anos (em 1986), o
deputado estadual mais votado do pleito. Com menos de trinta e cinco anos
(1994), elegeu-se deputado federal, com a maior votação do Estado,
reelegendo-se em 1998. Para mim, todavia, dois anos, em especial, são
marcantes: 1977 e 2000. Em 77, vi, pela primeira vez, o imberbe Déda num curso
de cinema no Atheneu, como dito acima. Na época, eu era presidente do Clube de
Cinema de Sergipe. Juntamente com barbudos e velhos comunistas, exibi, malgrado
percalços e riscos, o “Encouraçado Potemkin”, de Serguey Eisenstein. Com
efeito, os riscos advinham do fato de a obra de Eisenstein expor a ditadura do
czar. E nós vivíamos uma ditadura. No ano anterior (1976), por exemplo, desencadeara-se
a “Operação Cajueiro”, na qual ilustres sergipanos foram presos pelo regime de
exceção. Mas o jovem e denodado Déda estava lá, como que, encouraçadamente,
peitando a ditadura. Os anos se passaram. Cheguemos, então (e sem rodeios), a
2000. Estava eu (com um pouco mais de cinquenta anos), na sacada do meu
escritório, na Rua Laranjeiras, edifício Aliança, nas adjacências da agência
central da ECT, observando a passeata da virada de Déda. Era a eleição para a
prefeitura de Aracaju. Ele começara atrás nas pesquisas, mas, crescendo a cada
dia, tomou a dianteira e disparou (venceria com quase 53% dos votos válidos).
De cima do trio-elétrico em que conclamava a multidão, Déda viu-me e,
olhando-me nos olhos, gritou, para todos ouvirem: “Clóvis Barbosa, seu lugar é aqui. Do nosso lado. Saia daí. Eu conheço
sua história”. Ri com o gesto, acenei e agradeci. Depois, entrei e chorei.
Nada demais. Jesus também chorou.
Dois ou três anos depois, lá estava eu, procurador-geral do prefeito
Marcelo Déda, aquele mesmo menino de dezessete anos. Agora, timoneiro de um
novo encouraçado. De lá para cá, sempre estivemos juntos. Sim, e o porquê dessa
amizade? Respondo. Sou de Estância. Mas meu pai era de Simão Dias, terra de
Déda. Além disso, por ter sido do partidão (PCB), do antigo MDB e do PT (nos
primórdios), minha linguagem política, assim como a de Déda, está ligada ao
trabalhismo (este é o idioma que falamos, o idioma dos trabalhadores, o idioma
da esquerda, marcadamente da latino-americana). Nosso propósito ideológico, ademais,
é o mesmo: construir uma sociedade mais justa, onde a força do trabalho supere
a exploração do sangue e do suor do operário. Vejam, pois, que eu e Déda
compartilhávamos da etnia, do idioma e dos propósitos. Daí, meu orgulho por
ter, de alguma forma, inspirado o jovem que se tornou meu ídolo.
Déda via o mundo pelos olhos do povo. Era um
agente de transformação social. Ele tinha o arquétipo do político ideal: aquele
que detém a magia de transformar derrotas em vitórias e vitórias em conquistas
ainda mais memoráveis. Diferentemente do político estúpido, cuja débil ossatura
só é capaz de projetar a engenharia do caos. Quando vencedor, transforma a
vitória em derrota; quando derrotado, transforma a perda em sepultamento. O
estúpido, na política, não morre inúmeras vezes. Morre apenas uma. A morte
política, entretanto, depende mais da perspectiva do derrotado, do que do
tratamento que lhe é conferido pelo vencedor. Daí, a necessidade de encarar
cada batalha apenas como uma fase do longo processo que é a biografia política.
Veja-se, por exemplo, a biografia política do jovem Marcelo Déda. Perdeu
algumas batalhas? Sim. Mas por que transpira um ar como que de invencibilidade?
Porque digeriu as derrotas, capitalizando-as, a fim de, mais tarde, lucrar com
elas.
Mas, e o vazio que a ausência de Déda vai deixar em todos nós? Dizem
que saudade é a sétima palavra de mais difícil tradução e, também, de difícil
conceituação. O que é saudade? Neruda dizia que saudade é amar um passado que
ainda não passou, é recusar um presente que nos machuca, é não ver o futuro que
nos convida. O nosso menino Déda foi embora precocemente sob os aplausos do
povo e o adeus dos seus amigos e familiares. Mas ele vai voltar. Agora, com as
suas cinzas renascendo no Parque da Sementeira em forma de árvore.
*Clóvis
Barbosa escreve quinzenalmente aos domingos.
- Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de
domingo e segunda-feira, 8 e 9 de dezembro de 2013, Caderno A-7.
- Postado no Blog Primeira Mão no domingo, 8 de dezembro
de 2013, às 17h14min, sítio: